Nos dias 3 e 29 de janeiro, em matérias algo distintas, o Tribunal de Contas deu razão a todos aqueles – muitos – que avisaram que o “pacote de descentralização” foi efetuado sem estudo prévio, sem suporte sério e fundamentado, sem bases sólidas, apesar da aparente bondade descentralizadora.
Está pois desmascarada essa verdade, que nem um atabalhoado “procedimento” e acordo “a meio” com a ANMP (supostamente para colmatar alegadas insuficiências no financiamento e na operacionalização das transferências ou na partilha de responsabilidades) veio disfarçar, sendo que o Tribunal de Contas, a propósito, constatou que não se encontram consolidados mecanismos estáveis e transparentes de financiamento das competências a descentralizar.
Em suma, o Tribunal de Contas conta-nos a “verdade” em dois Relatórios publicados naquelas datas, pelo que, seguindo de perto as respetivas “notas de imprensa”, permita-se recordar, para refletir.
Em 03.01.2024, foi publicado o Relatório Sobre o Processo de transferência de competências para os Municípios, que abrangeu o período de 01.01.2019 a 30.09.2022, evidenciando a relevância deste processo de reforma estrutural da organização do Estado e a necessidade de avaliar a sua implementação e a prossecução dos propósitos enunciados, o que implica somar à ótica financeira, a avaliação da qualidade da despesa e da eficácia das políticas públicas.
Ora, na nossa modesta opinião, sem surpresas, o Tribunal de Contas detetou insuficiências de planeamento, a tal ausência de estudos atualizados que identificassem os domínios a descentralizar, a estimativa dos ganhos de eficiência ou os critérios de apuramento do respetivo financiamento, pelo que em termos de boa administração e subsidiariedade a “preparação” (ou sua ausência) da descentralização deixou muito a desejar, o que implicou um processo de financiamento sem fundamento, sem evidências, eventualmente sem garantias de que os municípios não ficariam “a perder” (como veio a verificar-se, como se verá), quiçá em detrimento dos cidadãos (só assim não aconteceria se os municípios, com as suas parcas receitas, conseguissem fazer o que o Estado, com mais dinheiro, não fez…).
Constatou-se, diríamos, consequentemente, que a implementação do processo de descentralização se afastou dos prazos e pressupostos estabelecidos na Lei-quadro n.º 50/2018, para além do que possa ser imputável à pandemia da COVID-19, traduzindo-se, nomeadamente, no diferimento da publicação dos diplomas setoriais, no prolongamento do período de aceitação de competências, na dificuldade em obter o acordo ou promover a iniciativa dos municípios e na “emblemática” e elucidativa não implementação atempada do Fundo de Financiamento para a Descentralização.
O Tribunal concluiu que a informação relativa à evolução da implementação do processo de descentralização era insuficiente e inconsistente e que tal teve impacto na qualidade do acompanhamento e monitorização, que revelou muitas fragilidades, ao ponto de a Comissão de Acompanhamento da Descentralização não ter procedido à avaliação da adequabilidade dos recursos financeiros de cada área de competências.
Em conclusão, verifica-se a ausência de uma visão estruturada e a nível nacional da evolução do processo.
Com base nesta análise fria do Tribunal, recomendou que o financiamento do processo de descentralização se consolide num formato que contribua para a convergência dos territórios e potencie a existência de finanças municipais saudáveis, atentos os princípios da estabilidade de financiamento, da coesão territorial e da garantia da universalidade e da igualdade de oportunidades no acesso ao serviço público.
Em 29-01-2024, o mesmo Tribunal de Contas publicou o Relatório da auditoria que realizou à dimensão financeira da descentralização, com referência ao exercício de 2022, pelo que ficamos agora a conhecer os resultados da análise ao quadro legislativo e regulamentar relacionado com o processo de descentralização assente na Lei Quadro n.º 50/2018, à adequabilidade das verbas financeiras colocadas à disposição dos municípios naquele ano e à qualidade dos procedimentos de coordenação e acompanhamento.
Como aí se constata, as normas que definem o modelo de financiamento do processo não são suficientemente claras e de fácil aplicação, pelo que se recomenda a revisão do quadro jurídico de forma integrada, nomeadamente a Lei das Finanças Locais, não devendo coexistir instrumentos paralelos financiadores das competências descentralizadas – o Fundo de Financiamento da Descentralização (FFD) e o Fundo Social Municipal (FSM).
Mas o Relatório da Auditoria é particularmente importante quanto ao “prejuízo autárquico” que o processo de descentralização implicou, face à inadequabilidade dos montantes transferidos para os municípios, o que, uma vez mais, não espanta e dá razão àqueles que foram sempre chamando a atenção para esse insuficiente “pacote financeiro”… Como confessa o Tribunal de Contas, foram recolhidos alguns indícios, a partir da informação disponível, de que, em 2022, existiu um subfinanciamento das competências descentralizadas, embora em 2023 tivesse havido um reforço de verbas.
Assim, o Tribunal de Contas formula um conjunto de recomendações, relacionadas, designadamente, com o aperfeiçoamento das regras de financiamento da descentralização, atentos os objetivos da coesão territorial, sendo também recomendado que os municípios adequem os seus sistemas operativos às exigências de reporte da informação financeira.
Em suma, muita coisa a afinar, a posteriori, porque, uma vez mais, e como é habitual neste país, a preparação de um processo desta importância foi claramente descurada e sem a intervenção multipolar desejada… Agora, temos de ir “atrás do prejuízo”!
Carlos José Batalhão